https://leitura.com.br/dellarquim-L030-9788590510819

31/01/2016

ONTOLOGIA POÉTICA DOS TEMPOS ATUAIS

Quando eu nasci, cheguei todo lambuzado de margarina.
Disseram que eu era um pão.
Já com alguns meses de vida e de unhas crescidas,
disseram que eu era um gato.
Fiquei mais velho e passaram a me chamar de boy.
E a medida que o tempo passou, trocaram esse apelido por gordo.

Na verdade, passaram margarina no meu pão e comeram tudo com suco de preconceito,
Mataram a pauladas aquele gato e agora me acham um chato.
A final, o que esta sociedade quer das nossas crianças?
Inteligência não é adquirida?
É possível distinguir o conceito de vida entre homem e animal?
Educação não é imperativo?!...



Obs: As obras deste autor são adquiridas exclusivamente via gilt-edge@bol.com.br

EU SEI, MAS NÃO DEVIA


                                               Marina Colasanti, 1972.
Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra     vista que  não as janelas ao redor.  
E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. 
E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.
E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagar mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes.
A abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir a comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar.
À lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. 
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.  
(1972).

Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

Fonte: http://www.releituras.com/mcolasanti_eusei.asp

Crítica ao texto:

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09. 

Mas foi escrito em 1972, há 44 anos, portanto, e já refletia as amarras sociais a que o homem está preso. A sociedade aprisiona em convenções, cujas não resta ao homem obedecê-las, segui-las, se quiser fazer parte do contexto social no qual pretendeu se inserir.

Caso contrário, se quiser quebrar esse paradigma, elo de uma corrente impositiva, terá de romper com todo o seu meio familiar, por extensão com toda a sociedade que o cerca, por conseguinte com todo o sistema social, de modo que ficará segregado como ser humano, num mundo marginalizado e desprezível aos olhos da sociedade universalizada.

Embora é possível romper esses elos, é impossível fazê-lo sozinho. Mas somente um grupo organizado, forte, fortíssimo, ou seja, uma nova sociedade que faça força a esse sistema de aprisionamento, seria possível aplacar a força do texto de Marina. O que não existe e, possivelmente, não existirá. Todos sabemos que é assim que nos submetemos, mas não devíamos nos submeter. Encontrar a fórmula da mudança somente, mesmo, com novo conceito de educação. O que para tanto, infelizmente não se alcançará. A gente se acostuma para poupar a vida, que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.  
J. M. Monteirás

O MENINO E O TAMBOR

Eu era um menino que só sabia fazer barulho,
por isso aprendi a tocar tambor.
Acontece que um dia deixei o meu tambor na chuva
e ele se deteriorou.

Fato é que também me esqueci de como se faz barulho
e de todas as outras coisas que eu tinha na mente.

Tornei-me  vazio — um tambor sem som.
Mas quis aprender coisas novas.
Portanto, diferentes daquelas as quais eu esqueci.

Assim, buscara alguém que me pudesse ensinar algo muito diferente do que outros pudessem almejar e que me instigasse a reaprender o esquecido.
Significa dizer que eu  abrira a mente e que isso é efetivamente aprendizado, troca, querer ver adiante.

Eu era professor e tornara-me aluno, eu era sabichão e tornara-me altero.
Eu era aluno e tornara-me professor com outro professor.
Agora, lhes abro o meu corpo, mente e emoção...
Como em troca de informações, por ainda nada sabermos.