Marina Colasanti, 1972.
Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em
apartamentos de fundos e a não ter outra vista que
não as janelas ao redor.
E, porque não tem vista, logo se
acostuma a não olhar para fora.
E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E, porque não abre as cortinas, logo
se acostuma a acender mais cedo a luz.
E, à medida que se acostuma, esquece
o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está
atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não
pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para
almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está
cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter
vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a
guerra.
E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja
números para os mortos.
E, aceitando os números, aceita não acreditar nas
negociações de paz.
E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler
todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no
telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de
volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o
de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagar mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes.
A abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir a comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na
infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de
cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar.
À lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo
de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não
ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai
afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila
e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando
no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente
vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para
esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto
acostumar, se perde de si mesma.
(1972).
Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
Fonte: http://www.releituras.com/mcolasanti_eusei.asp
Crítica ao texto:
O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.
Mas foi escrito
em 1972, há 44 anos, portanto, e já refletia as amarras sociais a que o homem
está preso. A sociedade aprisiona em convenções, cujas não resta ao homem
obedecê-las, segui-las, se quiser fazer parte do contexto social no qual
pretendeu se inserir.
Caso contrário, se quiser quebrar esse paradigma, elo de uma
corrente impositiva, terá de romper com todo o seu meio familiar, por extensão
com toda a sociedade que o cerca, por conseguinte com todo o sistema social, de
modo que ficará segregado como ser humano, num mundo marginalizado e
desprezível aos olhos da sociedade universalizada.
Embora é possível romper esses elos, é
impossível fazê-lo sozinho. Mas somente um grupo organizado, forte, fortíssimo, ou
seja, uma nova sociedade que faça força a esse sistema de aprisionamento, seria
possível aplacar a força do texto de Marina. O que não existe e, possivelmente,
não existirá. Todos sabemos que é assim que nos submetemos, mas não devíamos
nos submeter. Encontrar a fórmula da mudança somente, mesmo, com novo conceito
de educação. O que para tanto, infelizmente não se alcançará. A gente se acostuma
para poupar a vida, que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar,
se perde de si mesma.
J. M. Monteirás
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