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27/08/2013

ADEUS, GILMAR DOS SANTOS NEVES

Estou aqui pensando como não será a Seleção Brasileira no Céu.
Podem chutar à vontade, pois vai ter quem cate.
O bicampeão mundial Gilmar foi um dos grandes goleiros que vi voar pra bola e não espalmá-la: catava-a!
Em tempo, igualmente magistrais Castilho, Marco Aurélio, Manga... mas Chagas e Bangu dos inesquecíveis 2 de Julho e Flamengo (o Mengão!), da minha infância querida, em Ruy Barbosa-Ba (http://jornalmunicipal.blogspot.com.br/2009/10/um-memoravel-dois-de-julho-x-flamengao.html). É isso mesmo,  goleiros e tanto!, e outros craques do futebol... mas os dois últimos, da minha inesquecível cidadezinha....! Ah...!!!

 Vou dar trechos da minha obra DELLARQUIM.

P. 51.

Todavia, nada disso representava para nós, se comparado ao ufanável e pugente espetáculo nas tardes de domingo, em nosso teatro inintelegível, sem tapete no chão, de piso irregular, de telhado celestial (em 1959, a América Latina passava por grande transformação política, iniciara-se a guerrilha, Fidel Castro assumira o poder em Cuba, Che Guevara fora condecorado pelo governo brasileiro, abria-se, então, o livro do futuro enigmático; e lá, em nossa cidadezinha, ninguém parecia dar tanta importância): nossa festa privativa! Prazer inigualável, espetáculo de beleza e sincronismo a céu aberto, reitere-se, em que os aplausos ecoavam rumo às outras estrelas envelhecidas que por lá ficavam, a velar novos instantes, porque outras, recém-surgidas, no mesmo palco, conosco igualmente convivessem - minhas tardes de futebol.

P.59
Contava do orgulho da nossa cidade, as vesperais de domingo.
Do lado oeste, portanto oposto à estação e trens, rodeados por eucaliptos e bambus, homens faziam suas apostas. Alguns quase se excediam ao oferecer tantas vantagens, outros perdiam tudo, por acreditar que essas vantagens, às vezes já conseguidas, perdurariam para pleno êxito. Dou-lhe três por um, dou-lhe dez por dois... Aceito!
As duas equipes exaltavam até os deuses, embora eram homens comuns: nossos amigos e nossos ídolos, nossos inimigos e nossos heróis. Amigos, porque convivíamos pelas ruas, ídolos, porque eram mesmo insignes. Inimigos apenas por alguns minutos, levados pelo brio e respeito à competição; heróis, porque eram imbatíveis.
A primeira equipe vestia calção e meias brancas, camisa amarela com uma faixa perpendicular verde, que começava do lado esquerdo e subia até o ombro direito. Nas costas, um número destacado,  sobre o peito esquerdo, o emblema mais bonito até então visto: 2 de Julho. Ambos ainda na cor verde.
A segunda equipe, calção preto, meias vermelhas e camisa branca com duas faixas horizontais na altura do peito, uma na cor preta, outra na cor vermelha. Nas costas, o número, destacado, na cor preta, e sobre o peito esquerdo - como também não poderia deixar de ser - o "F", como fosse de força, ambos bordados, ainda em vermelho, com as bordas pretas.
Cabe repetir que eram vinte  dois homens, vinte e dois ídolos, vinte e dois craques, vinte e dois heróis. Dois times de futebol. E eu torcia pelos dois.
Penso até hoje ter sido aquilo uma dádiva de Deus, porque em um lugarzinho tão escondido do universo - onde areia era grama e nem acentos havia, onde, também, por todo o tempo do jogo as emoções se multiplicavam - aí eu estava, presenciando a tudo, admirado, vendo homens e mulheres a deliciar-se com as jogadas. Um, era canário cantador; outro, rubro-negro encantador. Dellarquim e eu, lado a lado, com ares de superioridade, em nossa análise tática, vendo um ora atacando o outro, ora defendendo-se com igual honra.

Estávamos todos predestinados ao equilíbrio e à felicidade, porque os jogos quase sempre terminariam empatados. Quem se dava a vantagens sabia que só ganharia, mesmo, com a dignidade daqueles herois: Álvaro, Joaninho, Moreno, Paulo, Nildo, Chagas, Zé Rarapa, tantos... tantos... tantos... tantos, meu Deus!

 P.61- 64
O jogo de futebol é caracterizado pela plástica das jogadas, pela euforia das torcidas, pelo próprio espetáculo, pelos comentários instantâneos e posteriores. Em nossa cidadezinha linda, de ruas limpas e onde não se cospe no chão, não era diferente: convinha-nos morar na admiração, no louvar, na euforia, sonhar no orgulho: Homo sapiens de Lineu.

 "O que vi com os meus próprios olhos, naufragados nos raios daquelas tardes, ninguém veria, não o fossem juventas de um coração infante, irresistivelmente abertas a esse colírio e já distinguissem o que mancha e cega do que apraz, embeleza e fica. Antes, tudo me era imaginário, depois, real  belo. Ah, eu pudesse ter de volta esse tempo!".

Homo sapiens de Lineu!!!
Quem nos desafiou, morreu,
São heróis os nossos homens!!!
As redes logo aos dolmens!!!!

E muito mais que em tríade, assim gritávamos pelas ruas.

Equipes afamadas caíam derrotadas aos pés de nossos heróis. Como podem jogar tanto futebol no pior campo do mundo?! - perguntava-se sempre cada qual daquelas.

Vou descrever algumas jogadas épicas, as quais, envaidecidamente, batizei de quânticas. Não dos canarinhos, nem dos rubro-negros, mas da seleção da cidade, uniforme azul-claro e branco, contra um dos melhores times que havia do Sul.
De esquema tático inicial 4-4-2, aparentando retranca, mas ver-se-á que não, porque era no campo do adversário. A bola teria de ser combatida por nossos dois atacantes, já na saída de jogo do adversário; na espreita pelo abafar surpresa, dois de logo atrás, abriam em "V", enquanto os laterais recompunham o meio-campo. Isso mesmo, cruzava quem tinha mais habilidade.
Equipe alguma resistia por mais de quinze minutos a esquema tão mutante. A armação inicial defensiva, tornava-se um ataque voraz em 2-4-4, sem medo de levar bola nas costas, por acreditar em si. Futebol também é coragem e inovação. (para ilustrar melhor esse esquema, imagine-se a figura de uma taça cheia da melhor champanhe, em que o nível seja a linha da grande área do adversário: ora, duas cerejas; ora, quatro, flutuando nessa linha; outras duas logo abaixo e mais duas em liberdade, para navegarem quer pelas laterais,  pela diagonal, quer pela sua vontade, tudo isso sem esquecerem de que de um horizonte a outro há sempre a linha do equador. Ao pé da taça, embalada numa rede, a cereja-mor: descansada, serena, confiante,  número um nas costas, galhos flexíveis e atenção nos olhos. À sua frente, dois lépidos e ferozes cães, prontos para a mordida, no resguardar da sua melhor fruta. É apenas questão de ver ou não o cristal de cabeça para baixo, e de cristais nós entendíamos.
Quanto à  taça sempre nos vinha, claro!, e de boca para cima, cheia de borbulhas do orgulho de nossas onze cerejas, deliciosamente boas de se ver, e que nunca se jactavam.

Meritórios, sim, dedicavam-se ao esquema tático, de forma única, sem se tolherem. Aquela equipe, se preciso fosse, e eu vi, defendia-se com oito e atacava com oito, porque os zagueiros, além de combativos também sabiam driblar, conduzir a bola com maestria, criar oportunidades de gol, e os pontas, que tinham a velocidade da luz, geralmente cruzavam rasteiro, pegando a defesa adversária de lado, assim, havia sempre quatro homens para concluírem a gol e mais quatro logo atrás, também para essa ou qualquer outra possibilidade.

O movimentar-se em "xis": como era engraçado o susto e o desespero do lateral direito adversário, ao ver a bola lançada sobre suas costas, e aquele nosso neguinho, Zé Biziu, a surgir da meia esquerda para o ataque, usando a linha central do campo e a da lateral como catetos, enquanto se transformava em hipotenusa. Quantos vi a tentar alcançar a bola com a mão, em lançamento belo de João Ziriguidum, tropeçando no ar, em suas próprias pernas e caindo no campo da vergonha. Ser-lhes ia melhor terem fechado os olhos e morrido na inércia, assim não veriam nosso "Zé", ponteiro esquerdo dos bons, ora a amaciá-la no corner e cruzá-la para a entrada fatal do nosso oito, ou do nove, ou do dez; ora cruzando-a por toda a extensão da área, para nosso outro ponta bater de primeira, com o lado de fora do pé direito, tornando o difícil ou quase impossível em mais um brado retumbante: de gol!

E quando, raramente, o adversário, cobrava um tiro de canto, nossa defesa subia e, de cabeça, recuava a bola ao goleiro que, velozmente, a lançava com o pé ao nosso centroavante Jorge Guaçu, enquanto no ar ecoava mais um grito retumbante.

Por dar mais, onde já se viu alguém entrar na área adversária, com bola e tudo, após tabelar em pernas adversárias, em cobrança com barreira, e encostar a bola no canto oposto ao do goleiro, com a força de uma calmaria? Eu posso provar! Nosso lula, Luis Lacerda e irmão de Delorme, camisa 10, o melhor de pele branca que já vi jogar, meu primeiro ídolo, assim fazia, mas somente nas tardes em que não estava tão inspirado. Mirabile dictu!

Quando digo que derramei lágrimas nestas páginas, certamente eis um dos motivos. Era-me também um tempo em que minha Seleção (a nossa, nacional) me fazia chorar, quando não ganhava de goleada.

Já era noite de domingo, quando aquela gente sofrida, de mãos calejadas de tanto trabalhar a terra, montava em seus cavalos e partia para os seu ranchos, a trote lento, compassado, pitando cigarro de palha e tentando repetir o refrão, enquanto nós, a garotada, continuávamos radiantes pelas ruas e orgulhosos dos nossos heróis: Homo sapiens de Lineu.

Ó minha cidadezinha linda, onde não se cospe no chão e aprendi a ser gente.

"Minha querida Orobó,
Tu que de tão limpa história
Não tens errante, abres tranca
Oh! mãe d'ilustres cidadãos!


Não te houveras como eu:
Foste à luta  e eu à lua,
Mas não te esqueci, nem devia,
Sementezinha de paixão.

Eu tantas vezes quis voltar
Para rever-te, abraçar-te,
Ficar descalço a correr,
Mas sem jamais pisar teu chão,

Quanto sei que são as saudades
Que bem florescem em tuas praças;
Flores que só mesmo as águas
Que saem da minha regarão.

Querida, hoje os meus braços são tão curtos".

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